quinta-feira, 29 de maio de 2025

Cinema de Micro-ondas: a fórmula que amamos engolir

Sabe aquele prato rápido que a gente esquenta no micro-ondas? Quente por fora, meio gelado por dentro, mas dá para engolir? Pois é, parece até o cinema que consumimos hoje, com embalagens bonitas, efeitos impressionantes, atores consagrados e uma fórmula já conhecida de olhos fechados: herói, conflito, vilão carismático, piadas colocadas no ponto certo e um final épico ao som de uma trilha que nos manda sentir o que talvez nem sentiríamos sozinhos. Sentamos, apertamos o play, deixamos acontecer, quase como um piloto automático que consome sem nem mastigar direito.



Estamos tão habituados a esse tipo de consumo que esquecemos que a arte, quando é potente, não vem fácil, não é servida pronta. Ela exige tempo, exige incômodo, exige que a gente sinta de verdade, pois como diria Adorno, não vivemos sob uma "cultura de massa", mas sim sob a lógica da indústria cultural, um sistema que transforma arte em produto, obra em mercadoria, sensibilidade em algoritmo. Desse modo, quando tudo vira fórmula, a gente desaprende a pensar, e isso é um projeto.


Quando o cinema incomoda, ele liberta


Enquanto isso, o cinema brasileiro, que morde, cutuca, sangra e abraça, segue marginalizado, rotulado como “difícil” e “sem graça”, assim, filmes como Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert, desconstroem o conforto com uma delicadeza brutal, escancarando hierarquias escondidas no cotidiano, e Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, mistura faroeste com crítica política, oferecendo um Brasil que se defende e se reinventa. São filmes que pedem ao espectador um olhar desperto, disposto a lidar com desconfortos, silêncios e raivas, pois não são feitos para serem esquecidos no dia seguinte.


Além disso, existe ainda o velho e incômodo complexo de vira-lata, expressão apresentada por Nelson Rodrigues para descrever a forma como muitos brasileiros enxergam o que é nacional como inferior. Fomos treinados a torcer o nariz para nossa própria arte, a desconfiar do que nos espelha demais, a achar que o que vem de fora é sempre melhor, mais bonito. Mas essa lógica serve a quem?



Só mastiga quem tem tempo?


É nesse ponto que outra questão aparece, talvez mais incômoda ainda: mas então, só mastiga quem tem tempo?


Talvez. Em um país onde milhões de indivíduos vivem jornadas exaustivas, dobram turnos, pegam dois ônibus para chegar em casa e ainda têm que cozinhar, cuidar dos filhos, lidar com boletos e cansaços profundos, quem é que tem energia para assistir algo que exija pausa e reflexão? É verdade: muitas vezes, o cinema fácil é o que cabe e é o que alivia. E esse alívio também importa, também tem seu espaço, mas é aí que mora a armadilha, à vista disso, se só o que alivia é o que chega até nós, quando teremos acesso ao que incomoda e liberta?


A verdade é que esse desequilíbrio não é neutro, fique atento, porque a arte, e o cinema com ela, nunca foram imparciais. Existe uma engrenagem poderosa por trás das grandes narrativas, uma concentração de decisões e recursos nas mãos daqueles que ocupam posições historicamente privilegiadas, que determinam o que chega às telas, e o que nos é oferecido, muitas vezes, não nos representando. Como alerta Chimamanda Adichie em seu TED O perigo de uma única história (2009), quando ouvimos apenas um tipo de narrativa, passamos a acreditar que ela é a única verdade possível, e isso nos impede de nos enxergarmos como protagonistas, nos empurra para um papel secundário dentro das nossas próprias histórias. Talvez o caminho esteja em romper com essa lógica e buscar uma escuta maior, onde vozes historicamente silenciadas possam finalmente reverberar, porque enquanto continuarmos sendo narrados por outros, continuaremos a ser coadjuvantes de enredos que não nos pertencem.


Conclusão: arte ou alívio?


Nós precisamos parar de consumir só o que já vem pronto, tendo em vista que nem tudo no cinema pode ser micro-ondas, às vezes é preciso mastigar, pensar e buscar filmes que incomodam, que fogem da fórmula. Assim, a arte é capaz de emancipar, mas só se estivermos dispostos a sair do automático. Mas então, eles servem, você engole: até quando?


Para saber mais:


Chimamanda Adichie: o perigo de uma única história (TED)

Trailer Oficial Novo - Que Horas Elas Volta?

Bacurau | Trailer Oficial







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