“Are you, are you, coming to the tree? Where they strung up a man they say murdered three…” Este famoso trecho da canção presente na distopia de Jogos Vorazes nos traz um questionamento consolidado: nossa realidade atual está tão distante daquela apresentada pela soturna Panem?
Panem é o país fictício onde se passa a história dos filmes, dividido em 12 distritos (antes 13), marcados por um forte desfavorecimento econômico, e uma Capital tão abundante em riquezas, que as pessoas tomam remédios para vomitar e comer ainda mais. Nesse país, acontecem os irreverentes Jogos Vorazes, nos quais são selecionados dois tributos de cada distrito para participar de uma competição mortal, um “lute ou morra”, televisionada para todos. É uma clara metáfora do controle autoritário, da desigualdade social e da manipulação das massas.
O filme também nos apresenta o Presidente Snow, líder responsável por comandar toda a organização dos jogos: carismático, sempre bem arrumado e dotado de grande sabedoria. Pelo menos, era essa a imagem que queria passar.
Porém, como uma pequena pedra no sapato, há uma estranheza nessa personalidade, pois por trás do discurso de “gente como a gente”, ele se mostra um sádico. Analogamente, autoridades atuais cultivam exibições ultranacionalistas, um nacionalismo extremo que exalta a superioridade de um povo e despreza os outros, criam inimigos comuns, adotam atitudes antidemocráticas e autoritárias, sendo aclamados pelo povo que, como pássaros surdos, não ouvem o inimigo chegar e derrubar seus ninhos.
Autores contemporâneos como Umberto Eco e Enzo Traverso alertam que o fascismo não volta com as mesmas roupas: ele se atualiza, se disfarça, se adapta às dinâmicas das redes sociais. O filósofo Zygmunt Bauman, em sua análise da “modernidade líquida”, mostra como os vínculos sociais se fragilizaram, e nesse vazio afetivo e político, líderes autoritários se fortalecem, cultivando um terreno fértil para discursos de ódio e soluções simplistas.
Assim, podemos notar que líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro são grandes exemplos dessa realidade. Assim como Snow manipulava a população com a transmissão dos jogos, oprimia revoltas dos chamados “distritos rebeldes” com extrema crueldade e banalizava vidas, Trump e Bolsonaro se organizam em atitudes semelhantes. Ambos atacaram a ciência, usaram fake news (notícias falsas criadas para manipular a opinião pública) para se manter no poder e criaram slogans ultranacionalistas, como “Make America Great Again” e “Deus, Pátria e Família”, alimentando o ódio contra seus inimigos: Trump contra os imigrantes, Bolsonaro contra minorias e opositores.
Além disso, eles promovem uma glorificação da ordem e da força, apoiando violência policial e ataques simbólicos contra grupos vulneráveis. Assim, um presidente que explicitamente elogia mortes por policiais e oferece vanglória ao torturador Brilhante Ustra como um “herói nacional”, não está realmente comprometido com a população. Em um país que passou por uma ditadura militar, e de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nos últimos dez anos (2013 a 2023), houve aumento na letalidade policial no país em 188,9%, isso é um ataque extremo.
Paralelamente, na obra cinematográfica, a Capital monopoliza toda forma de comunicação, a única "mídia" existente é a transmissão oficial, usada para manter ignorantes o conjunto social dos distritos. Hoje, essa manipulação acontece de forma diferente, mas com efeito semelhante. Líderes como Trump usaram as redes sociais para controlar narrativas, espalhar fake news e dividir a sociedade. A invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 é um exemplo real do que acontece quando o discurso autoritário alcança milhões e incita violência contra as instituições democráticas.
Dados mostram que o fascismo volta com novas roupas e não é exclusividade do Brasil ou dos Estados Unidos. Na Hungria, por exemplo, sob o governo de Viktor Orbán, vemos um avanço autoritário onde a mídia é censurada, o judiciário controlado e minorias atacadas com discursos nacionalistas. Assim como em Panem, a opressão se naturaliza, a verdade é distorcida e o medo se torna arma de controle, enquanto o povo se destrói entre si e os poderosos assistem friamente, alimentando-se do caos que eles mesmos criaram.
Nesse cenário, Katniss Everdeen surge como símbolo de resistência. Ela representa os grupos minoritários que tentam se rebelar, apesar da opressão e do medo, sua coragem é o fogo que pode incendiar as estruturas da tirania. E é esse fogo que precisamos manter aceso, para não deixarmos que o fascismo volte a dominar, sob qualquer máscara.
Para saber mais:
Fascismo : ontem e hoje – SciELO
"Modernidade líquida" – artigo explicativo (PePSIC / BVS)
Enzo Traverso – “As novas faces do fascismo” (resenha/entrada em português)
“O Fascismo Eterno” – Umberto Eco (texto em português / versão disponível)
Reportagem sobre Bolsonaro elogiando Brilhante Ustra (Poder360 / VEJA)
BBC News Brasil – Vídeo explicativo: o que aconteceu no ataque ao Capitólio (6 jan/2021)
TCC e trabalhos que relacionam Jogos Vorazes e fascismo (ex.: ESIC / UNISINOS)
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